Ao notarmos a crescente relevância que têm se dado à epidemiologia e epidemiologia de campo, principalmente no contexto pós Covid-19, é bem difícil imaginar uma realidade sem os estudos epidemiológicos, não é mesmo?
A epidemiologia pode ser definida como a ciência que estuda o processo saúde-doença em coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à saúde, propondo medidas específicas de prevenção, controle ou erradicação de doenças e fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento, administração e avaliação das ações de saúde.
De forma simplificada a epidemiologia pode ser compreendida com um estudo sobre a população que, direcionado para o campo da saúde pode ser compreendido como o estudo sobre o que afeta a população.
Atualmente, a epidemiologia tem como princípio básico o entendimento de que os eventos relacionados à saúde (como doenças, seus determinantes e o uso de serviços de saúde) não se distribuem ao acaso entre as pessoas. Há grupos populacionais que apresentam mais casos de certo agravo, e há outros que morrem mais por determinada doença. Tais diferenças ocorrem porque os fatores que influenciam o estado de saúde das pessoas não se distribuem igualmente na população, portanto, acometem mais alguns grupos do que outros (PEREIRA, 2013). Em síntese, pode-se afirmar que a distribuição das doenças na população é influenciada pelos aspectos biológicos dos indivíduos, pelos aspectos socioculturais e econômicos de sua comunidade e pelos aspectos ambientais do seu entorno, fazendo com que o processo saúde-doença se manifesta de forma diferenciada entre as populações.
Olhando de uma trajetória histórica, os conceitos descritos acima, já consolidados no campo científico, precisaram ser reformulados à medida que as descobertas científicas avançavam no campo da saúde, principalmente no que se refere ao processo saúde-doença. Mas como se iniciou o pensamento epidemiológico? Vem com a gente nessa viagem ao tempo!
Antiguidade
Hipócrates (460-377a.C.) – Primeiros fundamentos do pensamento epidemiológico
Conhecido também como pai da Medicina, é também considerado o autor dos fundamentos que estão na origem do denominado pensamento epidemiológico. Diferentemente do pensamento dominante à época, Hipócrates tentou descrever a doença dando-lhe uma perspectiva racional, em vez de se fundamentar em argumentos sobrenaturais e religiosos. Fez observações acerca da propagação das doenças e ainda sobre a forma como estas afetam populações, em seu tratado “Ares, Águas e Lugares”, Hipócrates especulou acerca das relações entre as doenças o clima, a água, o solo e os ventos predominantes, sendo apresentadas descrições de doenças relacionadas com águas paradas em pântanos e lagos (como a malária, por exemplo
(Séculos XVII e XVIII) Revolução científica – Surgimento das primeiras bases lógicas para o pensamento epidemiológico moderno
Neste período, os estudos epidemiológicos avançaram de forma impressionante a estagnação ocorrida entre os séculos XIV e XVII. Durante esse período, os cientistas acreditavam que o comportamento do universo físico era ordenado e expresso em leis que se baseiam em observações. Alguns cientistas acreditavam que esta linha de pensamento se podia estender ao universo biológico e, como tal, deveriam existir igualmente leis de morbilidade e de mortalidade que descrevessem os padrões de doença e morte (Gordis, 2008).
Alguns cientistas são destaque nesse período:
- John Graunt (1620 – 1674): Pioneiro em quantificar os padrões de natalidade e mortalidade.
- Pierre Louis (1787-1872): Utilizando o método epidemiológico em investigações clínicas de doenças.
- William Farr (1807-1883): Foi responsável pela produção de informações epidemiológicas sistemáticas para o planejamento de ações de saúde.
- Ignaz Semmelweis (1818-1865): Participou da investigação das causas de febre puerperal em Viena, na qual constatou que a contaminação das mãos estava relacionada à transmissão da doença e às altas taxas de mortalidade, introduzindo medidas de higiene que reduziram tais indicadores.
(Século XIX) O nascimento da epidemiologia moderna – As descobertas de John Snow, Louis Pasteur e Florence Nightingale.
A partir do século XIX, a epidemiologia sofreu uma grande revolução a partir dos estudos pioneiros do médico e sanitarista britânico, John Snow, sobre a epidemia de cólera em Londres. Seu trabalho de mapeamento de casos, óbitos, do comportamento da população (consumo de água) e dos aspectos ambientais da localidade do estudo, Snow conseguiu incriminar o consumo de água contaminada como responsável pela ocorrência da doença.
Considerado o pai da bacteriologia, o cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) foi responsável por identificar inúmeras bactérias e tratar diversas doenças. Seus estudos influenciaram no campo da epidemiologia na introdução às bases biológicas para o estudo das doenças infecciosas (PEREIRA, 2013), determinando o agente etiológico das doenças possibilitando o estabelecimento futuro de medidas de prevenção e tratamento.
Florence Nightingale se destacou nos métodos inovadores de tratamento de feridos de guerra, durante a guerra da Crimeia. Desenvolveu um estudo relativo ao estado de saúde do exército inglês que levou à criação de um extenso plano de reforma nas áreas da enfermagem e organização dos cuidados de saúde, publicado posteriormente. Seus estudos levaram à conclusão de que as taxas de mortalidade das doenças decrescem com a melhoria dos métodos de saneamento e com a implementação de normas de gestão e administração hospitalar (Cohen, 1984; Merril, 2010). Nightingale ainda foi pioneira na criação de métodos de apresentação de dados, como é o caso dos gráficos sectoriais, facilitando a interpretação dos resultados e sua análise estatística (Gaier, 1978; Susser & Stein, 2009).
(Século XX) Das doenças infecciosas para as doenças crônicas e o surgimento da epidemiologia de campo
Durante o período pós Segunda Guerra Mundial, alteraram-se rapidamente os padrões de distribuição de determinadas doenças. Nesta fase, houve uma reformulação do conceito de causalidade específica e surge uma nova abordagem para a compreensão dos problemas da Saúde Pública. Tais problemas passaram a ser vistos sob a ótica das mudanças demográficas e sociais, surgindo novos padrões de doenças relacionadas com o processo de envelhecimento, como as cardiovasculares, o cancro, a demência e a hipertensão. Neste período, se consolidaram os estudos de coorte e caso-controle.
Também neste período, foi presenciado a emergência da epidemiologia de campo como a disciplina distinta da epidemiologia. A tal distinção se deve a Alexander Langmuir, epidemiologista conhecido como o “pai da epidemiologia do couro de sapato” e fundador do Serviço de Inteligência Epidêmica (EIS) no Centro de Controle de Doenças dos EUA. Seus estudos, durante toda sua carreira, foram fundamentais no estabelecimento de sistemas de vigilância em saúde para a definição de populações de risco para determinada doença, determinar intervenções em saúde e monitorar seu impacto. Tornando-o pioneiro do conceito da investigação de surtos de doenças in loco levando a intervenções efetivas.
Os estudos de Richard Doll e Bradford Hill sobre o cancro no pulmão (1948) são um marco histórico na planificação e desenvolvimento de estudos epidemiológicos observacionais. Nessa época, especulava-se que essas doenças estariam associadas ao aumento do número de fábricas e de automóveis. Doll e Hill desenvolveram um estudo caso-controlo, comparando um grupo de indivíduos com cancro de pulmão a um grupo sem esta doença e concluíram que a diferença substancial correspondia à presença ou não dos hábitos tabágicos (Doll & Hill, 1950).
(Século XXI) Desafios complexos e a perspectiva de Uma só Saúde
A emergência da pandemia de Covid-19, demonstrou ainda mais a importância da epidemiologia da saúde pública. Algumas questões atuais, apresentam desafios para a saúde pública e que, consequentemente, demandam uma atuação mais próxima da epidemiologia. A questão climática, a qualidade do ar, da água, a poluição dos solos, o crescimento populacional, a pobreza e as desigualdades sociais são alguns pontos críticos deste século que afetam diretamente a saúde pública.
A amplitude dos problemas que afetam a saúde pública, evidenciam cada vez mais a natureza interdisciplinar da epidemiologia moderna, a partir da colaboração conjunta entre outras áreas da saúde como genética, ciência da dados, saúde animal e meio-ambiente. A perspectiva de Uma Só Saúde (One Health), tem sido cada vez mais evidenciada dada a complexidade dos problemas de saúde no século XXI, que demandam uma investigação aprofundada e intersetorial.
Uma jornada contínua
A trajetória histórica da epidemiologia e da epidemiologia de campo mostra a notável evolução da nossa compreensão da transmissão, prevenção e controle de doenças. Das crenças antigas às colaborações interdisciplinares modernas, o campo transformou-se significativamente. Ao refletirmos sobre esta jornada durante o Mês dos Epidemiologistas de Campo, reconheçamos a importância histórica dos epidemiologistas de campo, que permanecem na vanguarda da proteção da saúde pública, guiados pelas lições do passado e pelos desafios do presente e do futuro.
Texto por Matheus Ponte
Referências
Pereira, Carlos & Veiga, Nélio (2014). A Epidemiologia. De Hipócrates ao século XXI. Millenium, 47 (jun/dez). Pp. 129‐140.
Gomes, Elainne Christine de Souza Conceitos e ferramentas da epidemiologia / Elainne Christine de Souza Gomes – Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2015. 83 p.
National Center for Biotechnology Information. National Library of Medicine. National Institutes of Health. Alexander Duncan Langmuir. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4550144/#:~:text=Langmuir%2C%20a%20renowned%20epidemiologist%20who,grew%20up%20in%20New%20Jersey.> Acesso em: 28 de agosto de 2023
Johns Hopkins University. Bloomberg School of Public Health. Alexander Langmuir. Disponível em: < https://publichealth.jhu.edu/about/history/heroes-of-public-health/alexander-langmuir-md-mph> Acesso em: 28 de agosto de 2023